Guia Completo: Entendendo os Regimes Específicos na Reforma Tributária
A Reforma Tributária, instituída pela Emenda Constitucional nº 132/2023, representa a mais significativa mudança no sistema fiscal brasileiro das últimas décadas. Seu objetivo é simplificar a cobrança de impostos com a criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), alinhando o Brasil às melhores práticas internacionais sob os princípios da simplicidade, transparência e justiça tributária. Embora a nova estrutura se baseie em um sistema unificado de débito e crédito, o Regime Regular, a complexidade inerente a certos setores econômicos exigiu a criação de tratamentos tributários distintos. Este guia detalhará os principais regimes específicos, ajudando empresas e profissionais a navegar com clareza no novo cenário fiscal.
1. Os Diferentes Tipos de Tributação na Nova Reforma
Para compreender a nova sistemática, é essencial diferenciar os regimes de tributação estabelecidos pela reforma. Eles se dividem em três categorias principais: o Regime Regular, os Regimes Diferenciados e os Regimes Específicos.
1.1. O Regime Regular: A Base de Tudo
O Regime Regular, conforme definido no Art. 41 da Lei Complementar nº 214/2025, é o pilar da Reforma Tributária. Ele se baseia no princípio da não cumulatividade plena, onde todo o IBS e a CBS pagos na aquisição de bens e serviços geram créditos para o contribuinte. Esses créditos são utilizados para abater o imposto devido nas operações de venda, garantindo que a tributação incida apenas sobre o valor agregado em cada etapa da cadeia produtiva. Este será o regime padrão para a maioria das empresas no país.
1.2. A Diferença Crucial: Regimes Diferenciados vs. Regimes Específicos
Um ponto fundamental que gera confusão é a distinção entre Regimes Diferenciados e Regimes Específicos. Para simplificar: os Regimes Diferenciados alteram o quanto se paga, enquanto os Regimes Específicos alteram como se calcula e se paga.
- Regimes Diferenciados: Estes regimes mantêm a mesma mecânica de apuração do Regime Regular (base de cálculo e sistema de crédito), mas aplicam alíquotas reduzidas. Conforme o Título IV, Capítulo I da LC 214/2025, setores como saúde, educação, produtos da cesta básica e transporte público coletivo terão reduções de 60% ou até alíquota zero, visando diminuir o peso tributário sobre bens e serviços considerados essenciais.
- Regimes Específicos: Estes regimes, por outro lado, alteram a mecânica de cálculo e cobrança do IBS e da CBS. Em vez de apenas reduzir a alíquota, eles modificam a base de cálculo, o momento do pagamento ou a forma de recolhimento. Detalhados no Título V da LC 214/2025, eles incluem tratamentos como a tributação monofásica e bases de cálculo ajustadas, sendo o foco principal deste guia.
2. Mergulhando nos Principais Regimes Específicos
Os Regimes Específicos foram desenhados para endereçar as particularidades de setores cuja estrutura operacional não se encaixa adequadamente no sistema padrão de débito e crédito. A seguir, detalhamos os principais.
2.1. Combustíveis
O setor de combustíveis será submetido a um regime de tributação monofásica, conforme o Art. 172 da LC 214/2025. Isso significa que o IBS e a CBS incidirão uma única vez em toda a cadeia de produção e distribuição, concentrando a cobrança no produtor ou no importador. A lógica por trás dessa escolha é simplificar a fiscalização em um setor com poucos produtores e milhares de pontos de venda. As alíquotas serão ad rem — um valor fixo por unidade de medida (como litro ou metro cúbico) — e uniformes em todo o território nacional, eliminando a guerra fiscal entre estados.
2.2. Serviços Financeiros, Seguros e Planos de Saúde
Dada a natureza de suas operações, esses serviços terão uma base de cálculo ajustada. O Art. 185 e o Art. 235 estabelecem que, em vez de tributar o valor total da operação, a base de cálculo será a receita do serviço (juros, taxas, prêmios) com a dedução de despesas específicas. No entanto, um ponto crucial de atenção, previsto no Art. 187, é que as deduções são restritas a operações autorizadas por órgão governamental, sendo expressamente vedada a dedução de despesas administrativas. Para um banco, isso inclui as despesas de captação de recursos; para uma seguradora, inclui as indenizações pagas.
É importante notar que, conforme os artigos 238 e 226, é vedada a apropriação de créditos pelo tomador dos serviços de planos de saúde e previdência complementar. A razão para essa vedação é que tais serviços são considerados despesas de consumo final ou benefícios pessoais, quebrando a cadeia de créditos produtivos.
2.3. Operações com Bens Imóveis
O setor imobiliário terá um regime específico abrangente, que contempla desde a construção e alienação até a locação de imóveis. O ponto central deste regime é o "redutor de ajuste", mecanismo previsto no Art. 257. Ele permite que, na venda de um imóvel, o contribuinte abata da base de cálculo do IBS/CBS o valor correspondente aos tributos antigos (ICMS, PIS/Cofins) que incidiram na sua construção antes da reforma e que não geraram crédito.
Do ponto de vista estratégico, um detalhe fundamental do Art. 257, §4º, I, é que, se o imóvel for vendido para outro contribuinte no Regime Regular, o "redutor de ajuste" é transferido ao novo proprietário. Adicionalmente, o Art. 252, §2º, I, traz uma informação valiosa para o planejamento de negócios: operações de permuta de imóveis, quando realizadas sem diferença em dinheiro (sem "torna"), não estarão sujeitas à incidência do IBS/CBS.
2.4. Compras Governamentais
As aquisições de bens e serviços pela administração pública direta, autarquias e fundações públicas terão um regime próprio, definido no Art. 473. A regra é simples: o produto da arrecadação do IBS e da CBS é integralmente destinado ao ente federativo que está comprando. Para operacionalizar isso, as alíquotas dos outros entes são zeradas, e a alíquota do ente contratante é elevada na mesma proporção. A lógica é garantir que todo o tributo gerado pela compra pública retorne para os seus próprios cofres, evitando transferências de receita entre esferas de governo nesse tipo de operação.
2.5. Sociedades Cooperativas
As cooperativas poderão optar por um regime específico (Art. 271) que busca preservar sua natureza operacional. Nele, as transações realizadas entre a cooperativa e seus associados (ato cooperativo) terão alíquota zero de IBS e CBS. Além disso, a opção permite que o associado transfira para a cooperativa os créditos de IBS e CBS acumulados em suas aquisições de insumos, conforme o Art. 272. No entanto, é preciso atenção a um detalhe do Art. 271, §1º, II: se uma cooperativa de produção fornecer um bem a um associado que não é contribuinte do regime regular, ela deverá anular os créditos que apropriou relacionados àquele bem, mantendo a integridade do sistema de não cumulatividade.
2.6. Bares, Restaurantes, Hotelaria, Parques e Agências de Turismo
Estes setores terão tratamentos especiais para refletir suas dinâmicas de consumo e operação.
- Para Bares e Restaurantes (Art. 275): Terão uma alíquota reduzida em 40%. Como contrapartida, estabelecida no Art. 276, os adquirentes (clientes) não poderão apropriar créditos de IBS e CBS sobre essas despesas. A medida visa simplificar a tributação e reduzir a carga para o consumidor final.
- Para Hotelaria, Parques e Agências de Turismo (Art. 281 e 289): De forma análoga aos bares e restaurantes, os serviços de hotelaria e parques também terão uma alíquota reduzida em 40%. O Art. 283 estabelece a mesma contrapartida: a vedação à apropriação de créditos pelo adquirente. No caso específico das agências de turismo, a base de cálculo será sua margem de intermediação, ou seja, o valor total cobrado do cliente menos os valores repassados aos fornecedores diretos (hotéis, companhias aéreas etc.).
3. Outros Tratamentos Tributários Importantes
Além dos Regimes Específicos, a reforma mantém ou cria outros tratamentos que são essenciais para uma visão completa do novo sistema tributário.
- Simples Nacional: O Simples Nacional foi mantido como um regime opcional. As empresas optantes poderão escolher entre duas vias: continuar no regime simplificado ou apurar o IBS e a CBS pelo Regime Regular. Um ponto de atenção para o planejamento, segundo a nova redação do Art. 13 da Lei Complementar 123/2006 (alterada pelo Art. 517 da LC 214/2025), é que a opção de migrar para o Regime Regular será feita semestralmente (para períodos iniciados em janeiro e julho) e será irrevogável para o semestre em questão.
- Produtor Rural e Transportador Autônomo: Como regra geral, o produtor rural com faturamento anual de até R 3,6 milhões e o transportador autônomo pessoa física não são considerados contribuintes do IBS/CBS (Art. 26 e 164). Para não quebrar a cadeia de créditos, a empresa que adquire produtos ou serviços deles terá direito a um **crédito presumido**, conforme os artigos 168 e 169. Os artigos 164, §2º e §3º, trazem uma regra prática importante: se o produtor exceder o limite de R 3,6 milhões, ele se torna contribuinte a partir do segundo mês subsequente. Contudo, se o excesso for inferior a 20%, a mudança para o regime de contribuinte só ocorrerá no ano-calendário seguinte.
- Zona Franca de Manaus (ZFM) e Áreas de Livre Comércio (ALC): As vantagens competitivas da ZFM e das ALCs serão mantidas. A LC 214/2025, em seus artigos 443 a 457, estabelece mecanismos próprios para isso, como a concessão de créditos presumidos de IBS e CBS para a indústria local, garantindo que a produção na região continue sendo vantajosa.
Conclusão
A Reforma Tributária, embora tenha como premissa a simplificação por meio de um Regime Regular único, demonstra pragmatismo ao reconhecer as particularidades de diversos setores econômicos.
Os Regimes Específicos e Diferenciados são a ferramenta para adequar a tributação às realidades de mercado, buscando manter a neutralidade e a competitividade. Para as empresas, o momento exige atenção: é fundamental realizar um planejamento tributário detalhado para identificar o enquadramento correto, ajustar processos e se preparar para as mudanças que começarão a ser implementadas a partir de 2026.